Permitindo-se a Aprender.
Numa determinada ocasião, recebi um telefonema de uma pessoa que queria informações sobre o “Curso de Proteções Móveis” que eu ministro, pois ele e um amigo tinham interesse em fazê-lo. Na conversa por telefone, expliquei como eram as aulas e passado algum tempo, eles apareceram para fazer o curso e assim conheci uma história mais que original.
Os dois amigos de longa data resolveram começar a praticar escaladas “indoor” e começaram a treinar na academia 90 Graus, onde Paulo Gil que é proprietário, orientador da academia e um “Mestre do movimento na vertical”, conhecendo a vontade deles em fazer escalada “outdoor”, recomendou meus cursos.
Num dado momento, perceberam que precisam adquirir mais conhecimentos técnicos para a prática da escalada outdoor. Com esse pensamento, compraram um “livro” sobre o assunto e o equipamento básico necessário. Estudaram “minuciosamente” o livro em casa e no grande dia de colocar o conhecimento em pratica, foram para uma pedreira, a Pedreira do Dib, que é um local de escaladas, perto de Sp, para praticar o que aprenderam com o livro.
Isso me dá arrepios, pois lembra minhas primeiras experiências em 72 ̸ 73, onde eu barbarizava as pedreiras na região de Santa Felicidade, Mercês, Vista Alegre (Bairros de Curitiba), com um toco de corda de 30 mts de sisal, um “oito soldado” e alguns pitons feitos por um ferreiro. De muitas pedreiras fui expulso, outras chamaram os bombeiros, a polícia e em uma ocasião, o vigia de uma pedreira, já de saco cheio com o Homem Aranha aqui, disparou dois tiros de espingarda como aviso caso eu voltasse.
Logo que os dois amigos chegaram à pedreira, assistiram um escalador cair de uma via e quebrar o pé. Refeitos da cena e entendendo aquilo como um, “bem vindos ao clube das fraturas”, continuaram com seus propósitos e treinaram nas vias.
Daí pra frente aconteceu o que eu chamo de “originalidade da relação”. Após a ida a pedreira, entre escaladas esportivas, caminhadas e montanhismo, eles chegaram até mim com uma lista de saídas para as montanhas e escaladas que impressionaram pela disposição e curiosidade que demonstravam.
Tinham escalado em vários lugares e ainda queriam subir muitas outras. A última escalada que fizeram em montanhas, foi uma tentativa na Agulha do Diabo, mas desceram perto do cume, um pouco antes da “Chaminé da Unha”, por se sentirem inseguros e por falta de conhecimentos. Por isso, os dois amigos resolveram que deveriam aprender mais e me procuraram.
A Chaminé da Unha é um setor aéreo que impressiona muito. Em 1977 quando guiei essa escalada na compania de Hiran Brandalize, nesse mesmo ponto, também fiquei impressionado! A cena de um vale chamado “Caldeirão do Inferno”, na tentativa de chegar ao cume da “Agulha do Diabo”, um obelisco de granito de 500 a 600 metros de altura (não tenho certeza da altura), que sobe no meio de um vale rodeado de selva em que só se chega com muita caminhada, peso nas costas, num jogo que envolve três dias para quem não conhece a região. O cume, que mal cabe duas pessoas, com os grampos de ancoragem salpicados por raios, você sente o quanto está exposto. Acredite!
(Essa viagem que fizemos para o Rio de Janeiro, em 77, foi com o plano inicial de passar uma semana escalando e no e final ficamos um mês, em pleno mês de fevereiro, sob um calor infernal. Uma viagem pioneira atrás de escaladas e montanhas. História que conto depois pra vocês.)
Quando adolescente li um trecho de um texto de Saint Exupéry, mais conhecido na ilha de floripa pelos pescadores, como “Zé Perri”, quando descia lá com seu aviãozinho na praia batizada por ele de “Champ et Pêche” (campo de pesca) e hoje conhecida como “Campeche”, que dizia algo assim:
“amamos as montanhas desde longe, suas encostas seus vales e aresta e a maneira que temos para exteriorizar esse amor, é escalando-as”.
Nas montanhas que me formaram como montanhista, Marumbi, Hanhangava, Pico Paraná, conheci muitos “apaixonados” e era em sua grande maioria uma paixão intelectualizada, se posso dizer assim, pois existem os pseudos intelectuais também, mas era uma maneira bucólica de ver a montanha, ficando só no primeiro estágio da relação, que é ver a montanha de longe, percebê-la e amá-la. Poucos foram para as paredes desfrutar desse universo e não era o que eu queria para mim. Queria ser um montanhista, não só amá-las! Para isso, sabia que teria que arriscar meu pescoço.
No Marumbi, geralmente as pessoas que freqüentam têm um “apelido de montanha” A expressão mais extremada desse “amor contido”, foi um cara apelidado “Elefante”, um Marumbinista que contava as mais loucas histórias sobre escaladas imaginárias e que eu, no meu universo de aprendiz e já percebedor dessa relação imaginária, achava o máximo aquelas historias.
Não foi à toa, que minha primeira conquista, com apenas 15 anos já me achando um montanhista, foi uma fissura de poucos metros que escalei, 4° ou 5° grau, mais uma brincadeira arriscada do que uma escalada que mereça méritos, vamos dizer assim, ganhou o nome de “Fissura do Elefante” em homenagem a esse personagem.
É difícil sair desse primeiro estagio, você realmente terá que estar disposto a entender o que esta acontecendo se quiser interagir com montanhas, Algumas pessoas me procuram com certa tristeza. Quase sempre contam a mesma história: Têm um saco cheio de equipamento em casa, mas não tem motivação para usá-lo. Falam das responsabilidades, da falta de companheiros, das dores, da falta de tempo, da família e etc. Mas também contam que seu coração e seu cérebro ficam constantemente lembrando, que esses lugares cheios de aventuras e vida existem, e que gostariam de percorrê-los, mas nem sempre é assim que acontece. O desanimo e a falta de motivação fomos nós que selecionamos esses “sintomas” e demos nomes a eles. Quando entramos nesse universo, tudo então passa a ter uma relação muito séria, onde cada coisa tem seu peso.
Sair de casa e deixar todas as coisas que nos dão referência de quem somos, para fazer algo de conotação anti-social ou solitária, é extremamente complicado para nosso cérebro, acostumado com mesmices. Algumas pessoas precisam de estímulos variados para sair de casa. Geralmente é sair com a “turma” ou para encontrar a “turma” e na maioria das vezes, pra misturar comida com bebidas, sacudir bem e encher o pandulho. É lógico que eu estou exagerando, algumas vezes “as turma”, vão ao teatro antes. Como diz Chico Buarque: “As turma” são sempre, um carro alegre, cheio de gente contente.
Escalar montanhas antes de qualquer coisa é uma relação, é um acordo pessoal a ser estabelecido. Arrumar companheiros para esse tipo de aventuras é sempre mais difícil, porque necessita muita disposição e humor para subir montanhas carregando peso nas costas, procurando coisas de sucessos duvidosos, de riscos inevitáveis e de confortos resumidos.
Esse tipo de atividade, as escaladas de comprometimento, é diferente de sair com a turma para uma balada, às vezes, sempre no mesmo lugar e com as mesmas caras. Quando você desperta para este tipo de aventura, outra parte de você é quem tem esse interesse e que sai atrás, que vai buscá-las.
Hoje existem vários grupos de pessoas envolvidas com as atividades mais “pesadas” ao ar livre, as conhecidas comunidades de caminhadores, escaladores, montanhistas e etc. Se você assume uma postura diferente da “turma”, é lógico que sempre tem algo a perder, pois é bastante desconfortável deixar esse convívio de comodidades que gera essa convivência em grupos, porque atividades como montanhismo sempre são feitas entre poucas pessoas e sempre envolve muito trabalho, risco e exposição, mesmo numa atividade de fim de semana.
As pessoas que andam em grupos não querem ser montanhistas, querem andar em grupos e tudo o que isso gera. Existem grupos, com chefes e presidentes híbridos, Pessoas que vêem a publico constantemente, quando algo acontece e gera notícias, para dar uma “opinião”. Isso acontece a toda hora, basta observar ao redor.
Montanhismo não se comanda, não se molda, é uma das maiores expressões de liberdade do homem neste planeta. Ninguém convence uma pessoa a subir uma montanha, é mais que nunca uma expressão de liberdade. As montanhas do mundo estão abertas, para todos poderem conhecê-las e tocá-las.
Na realidade, as pessoas não escalam porque existem montanhas e escaladas, e sim porque isso possibilita um convívio com outras pessoas. Não são as montanhas e as escaladas o foco principal da brincadeira.
Mas quando essas coisas passam a ter um significado maior e começamos a explorar além de nossas possibilidades, precisaremos de uma disciplina que não precise de monitoração. Disciplina que venha do conhecimento protetor, que só acontece se você souber aprender, se você perceber que só com o coração de aprendiz terá acesso a esse conhecimento. É com seriedade e disciplina monástica que aprendemos, porque usaremos esse conhecimento para se arriscar. Nesse momento, começa um jogo muito sério, onde a aposta tem que ter backup e o apostador coração de guerreiro. Quanto à sorte, se tiver certeza que aquele serác ou aquela laca, não vai cair na sua cabeça, continue, caso contrário, faça como um montanhista desça e volte outra hora!
O conhecimento é o grande segredo pra quem quer se arriscar, pra quem quer ir além, conhecer a fundo suas possibilidades e vivenciar esse mundo das montanhas. Só que não basta pôr na reta. A única forma de ir além é estudar e se permitir aprender.
Os cursos de evolutivos de montanhismo e de técnicas de escaladas, associados a outros conhecimentos, são o estágio que possibilitam uma pessoa a ir mais longe e desmistificar uma série de equívocos, plantados habilmente, com relação às escaladas “difíceis, perigosas e impossíveis”, ou “montanhas assassinas” e coisas do gênero, que na realidade não existem. Somente o uso de conhecimentos e uma puta disposição para fazê-lo, e evidentemente, uma habilidade natural ou adquirida para lidar com o “risco à exposição”, que são elementos que compõe e mantém o montanhismo, em sua essência.
No momento que você percebe que o que chama à atenção são esses tipos de vias e que elas estão nas montanhas, e que as montanhas começaram brilhar e ficarem mais interessante que aquele carrão ultimo tipo, ou aquela modelo que “te deu bola”, então e não te resta alternativa a não ser educar-se. Daí pra frente, tudo fica muito sério, pois entrarão em jogo vários fatores e situações que você não terá com se esquivar. Problemas como: tempo, dinheiro, família, trabalho e mais uma serie de obstáculos malucos, antes de você soltar a corda e começar a escalar, que acaba sendo mais fácil criar uma situação tipo: “sabor igual ao natural”, como vemos em alguns alimentos de pacotinho. Talvez o maior problema, que eu percebo, é a dificuldade natural que temos em lidar com nós mesmos, com o nosso cérebro. Esses obstáculos serão maiores que os desafios que temos em mente com relação à escaladas e montanhas,
Se você realmente quiser conhecer esse universo de perto, conviverá intimamente, além dos problemas acima citados, como sempre digo, terá que lidar com os “elementos que regem o montanhismo”, que são “o risco e a exposição”. Não o risco de uma queda de mau jeito ou de se estar exposto às intempéries, mas a relação direta com a morte, com perdas, com abnegação e é muito difícil sair do conforto das “cabanas do vale” para escalar a si próprio, enquanto você interage com o que esta na sua frente, você não esta fantasiado, tudo o que acontece naquele momento, inclusive você, é montanhismo. Além do que, a relação com montanhas ser algo muito sui-genires e por outro lado simplesmente mágico, e essa relação mexerá com seus valores pessoais, modificando-os, mais além do que você possa imaginar, O maior estímulo de um montanhista é algo simples de conceber. Ele sabe de sua paixão, sabe que esses lugares existem, sabe o que quer e sabe também que pode no mínimo, tentar.
Quando aparecem na minha frente, pessoas que há um tempo vem experimentando esse tipo de “vias de exposição”, e que durante a semana tem uma porrada de responsabilidades a cumprir e que mesmo assim, arrumam tempo nos finais de semana para fazer esse tipo de escaladas, então só me resta ensinar tudo o que eles devem e precisam saber, e como e porque arrisca-se. Coisas que você tem que saber, para ver a onde está o perigo real.
Os dois amigos desta história têm por hábito estudar, treinar as técnicas, praticá-las e utilizá-las. São aprendizes constantes e têm a liberdade e curiosidade necessária para isso. Como guia de montanha, os ajudei a colocarem em ordem, no seu vocabulário, as palavras, “risco, exposição e impossível”.
Agora as coisas se tornaram reais e palpáveis e com certeza desfrutarão com mais confiança e conhecimento, de inúmeras vias e faces de montanhas, porque o perigo não esta nas avalanches, quedas e tempestades, está em não saber.
A História do montanhismo está cheia de atitudes pessoais e é graças a essas pessoas, que saíram do rebanho, que podemos ver a relação mais pura, entre homens e montanhas.